ALICE


A casa estava escura, apesar de lá fora estar um dia claro com sol forte. Um típico dia de verão.
Nenhuma porta ou janela aberta fazia a luxuosa casa de campo parecer um casebre abandonado. A temperatura quente e o tempo abafado tornavam o cheiro mais insuportável, o odor férreo de sangue misturava-se ao perfume das rosas e acentuava-se a cada leve sopro que tocava a folhagem.

Sentada à beira da cama, em seu quarto, brincava com a boneca favorita. O vestido branco rendado estava sujo e parecia não ferir a delicadeza da colcha rosada. Com um afetuoso sorriso, Alice acariciava os cabelos dourados da boneca. Tão doce e inocente quanto o sorriso era a dona dele, uma menina de longos e fartos cabelos negros, grandes olhos azuis que pregavam muitas peças em quem os olhasse. De pele alva e maçãs do rosto sutilmente rosadas, Alice assemelhava-se a uma delicada bonequinha de porcelana. Uma garotinha visivelmente frágil em seu pequenino corpo de dez anos, cuja alma carregava algo assustador que não se adequava à sua forma ingênua.

***

Ao cair da tarde um grupo com quatro pessoas, que fazia trilha, decide fazer uma pausa e recobrar o fôlego. Eva abre a mochila em busca de uma garrafa d'água e dá-se conta de que as duas que trouxera encontravam-se vazias, pede um pouco aos colegas e entre tantas garrafinhas apenas uma continha menos da metade de seu precioso conteúdo.
- Poxa... Todas vazias? - lamenta a moça.
- É que saímos cedo e já está escurecendo – justifica Pedro, dono da única garrafa d’água.
- E falta um bocado para chegarmos à pousada - diz Lúcio.
- E se pedirmos um pouco naquela casa? - pergunta Pedro, apontando para a casa escondida detrás de um soberbo portão de ferro.
- Não sei não... - fala Clara. - A casa parece fechada, e... Credo! - disse em tom repugnante, comprimindo o nariz entre os dedos - Que cheiro é esse?
- Não sei. Deve ter alguém aí tomando conta.
Pensaram por um momento e resolveram arriscar, afinal em breve anoiteceria e não podiam caminhar mais uns bons metros sem alguma água nas mochilas.
Empenhando pouquíssima força Lucio abriu um dos portões que se encontrava destrancado.
- Estranho, - comenta Eva - uma casa como essa deveria estar protegida vinte e quatro horas por dia.
- Isso não vem ao caso agora – fala Lucio - O que precisamos é de água não dicas de segurança.
Eva não gostou do comentário, mas ficou calada, não era o momento para entrar numa discussão.
Numa fila foram adentrando o pátio da casa formado por um vasto tapete verde onde estava estacionado o carro da família.
A porta de entrada também se encontrava aberta e, apesar da estranheza decidiram entrar.

***

Ela sabia que tinha gente na casa. Ajeitou o vestido azulado da boneca e acomodou-a em frente ao travesseiro de modo que permanecesse sentada.
Saltou da cama num tímido pulinho.
Próximo aos pés da cama contornou o corpo da mãe atirado ao chão de forma retorcida numa poça que passava do viscoso já beirando o seco.
- Não fique com medo, eu já volto - disse, olhando para baixo em direção ao corpo.
Abriu a porta e saiu.

***

Lucio tateou a parede junto à porta de entrada, encontrou o interruptor e impulsionou-o para cima fazendo com que as luzes do hall de entrada e da sala acendessem. O grupo ficou deslumbrado com a beleza da casa e estranhou o fato de não haver ninguém tomando conta.
O terrível odor tornou-se mais intenso, tapar as narinas diante daquilo foi inevitável.
- Por Deus, o que é isso? - pergunta Clara.
- Parece carniça – retruca Pedro, enojado.
Pedro não conteve a repulsa e levando uma mão à boca e outra ao estômago, correu para fora e despejou todo seu nojo sobre a grama. O líquido amarelado e ralo saiu como um jato de sua boca e pareceu aliviar sua náusea. Limpou a boca, cobriu o nariz com um lenço e voltou para dentro da casa.
Em meio à um mal-estar generalizado, passos lentos e leves são ouvidos caminhando pelo assoalho do andar superior. Todos imaginam que seja o dono da casa. Lucio grita um “Olá!” e, em tom bastante elevado diz que veio com um grupo, pois precisam abastecer-se com água.
Nenhuma resposta é ouvida.
Repete mais uma vez e nada acontece.
- Vai ver ele não ouviu. Vou até lá – diz Eva.
- Vou com você – fala o rapaz que gritou.
Com cuidado eles sobem as escadas, não sabem qual será a reação do dono da casa ao verem-nos por lá. Os outros dois ficam lá embaixo apenas observando e tentando não passar mal.

Ao final do corredor havia uma porta semi-aberta, o odor pútrido parecia aumentar à medida que se tornavam mais próximos. Ao chegar à porta, com calma o rapaz repete o mesmo discurso que há pouco.
- Tô começando a ficar com medo - diz Eva, apoiando-se no braço do amigo.
Ele abre a porta e depara-se com um breu assustador, acha o interruptor e o lustre é aceso deixando à mostra uma cena pavorosa. O grito da jovem corta de maneira brusca o silêncio mortal que imperava em toda aquela escuridão.
A porta fecha-se atrás deles, o barulho faz os dois voltarem-se abruptamente, junto à parede ela surgiu como um anjo em meio a um cenário de destruição iluminando a tudo se mostrava quieta, séria.
Olharam-na assustados, era estranha sua calma diante de tal cena. Aturdida Eva vê sangue no vestido da menina.
- Garotinha... – diz a moça, com voz trêmula. – Sabe... Sabe dizer o que aconteceu?
Os olhos de Eva, apesar de observarem uma figura tão suave, pareciam não se acostumar àquela obscuridade que ia muito além das luzes apagadas.
Alice afastou-se da parede e foi até ela, fez sinal com a mão para que abaixasse. Eva olhou para o amigo que fez um sinal com a cabeça para ela obedecer, a jovem então apoiou as mãos nos joelhos e tombou o tronco para frente. Alice aproximou-se do ouvido dela e sussurrou algo estarrecedor.
- Eu o matei.
Eva afastou o rosto e olhou abismada para a garotinha que agora possuía um sorriso resplandecente como se houvesse acabado de ganhar a boneca que tanto desejara. Trouxe a mão à frente e a lâmina da faca fez-se fúlgida e num único golpe, sem dar chance dela reagir rasgou-lhe o pescoço atingindo sem piedade a jugular. O sangue jorrava profuso, imaculando ainda mais o branco rendado de seu vestidinho.
Enquanto Eva agonizava em gritos roucos e abafados jogada ao chão meio a uma piscina de sangue, Lucio estava estático, como se uma força invisível o segurasse impedindo-o de movimentar um único músculo. Alice pôs-se a rir do pânico estampado no rosto dele, era uma risada gostosa como a de um bebê, e alegre demais para uma situação tão bestial. Ainda rindo aproximou-se dele e sem nenhum esforço cravou-lhe a faca na barriga rasgando seu ventre de baixo para cima numa linha reta e profunda. O corpo caiu pesadamente para frente, Alice afastou-se rápido para não ser atingida. A voz saía baixa e ele não conseguiu respirar por mais do que míseros e aflitivos segundos que passaram acelerados já que a dor o impediu de sentir o tempo.
- Shhh... Papai está dormindo – murmurava olhando de um para outro, com o dedinho em riste próximo à boca.
Cantarolando baixinho saiu do quarto.

Parou frente à porta e viu um casal junto à escada. Sem esboçar nenhum sentimento aparente Clara viu o sangue que banhava o vestido, o sapatinho branco lustroso e os braços da menina. Ao ver a faca dependurada naquela delicada mãozinha não pôde deixar de pensar que aquela garotinha havia emergido de um matadouro onde Clara presumiu quem era a caça e quem era o caçador. A essa altura Pedro se aproximava de Alice, imaginando que aquele inócuo anjinho era vítima de algum maldito louco, Clara então gritou para ele parar. Virou-se para ela e abriu a boca para defender a doce criaturinha acuada no fim do corredor, no entanto de seus lábios nenhum som foi emitido. A mochila caiu de sua mão e seus olhos pareciam querer saltar das órbitas, sua última visão foi a de Clara com as mãos na boca e os olhos arregalados pelo pavor. Ele desabou sob o tapete cinza que revestia o assoalho de carvalho bem lustrado do único corredor do primeiro andar.
Do ponto onde Alice estava, mirou como um atirador a ponta da faca em direção às costas de Pedro e atirou com a agilidade e a precisão de um assassino profissional.
Clara não sabia se corria, se gritava, se chorava ou se ia ao auxílio do amigo, simplesmente ficou ali imóvel sem reação, sentindo somente a agonia e o arrependimento por ter aceitado a infeliz ideia de "invadir" a casa de campo.
- Sabe... - dizia caminhando até o corpo de Pedro - Mamãe é muito ciumenta.
Agachou ficando de cócoras, esticou o braço e bem devagar puxou a faca. Sentiu o calor do corpo dele e uma sensação de rara felicidade ao ver o brilho ainda vivo no sangue que cobria a lâmina impedindo-a de ver o reflexo azul de seus olhos.
- Logo ela vai acordar e ficará triste se te ver por aqui - dizia lambuzando o dedo no sangue da lâmina.
Com delicadeza limpou a faca numa das pernas da calça de Pedro, em seguida a analisou para se certificar de que ficara realmente limpa, ainda não conseguia ver seu reflexo, mas estava bom. Pôs-se de pé, virou-se para Clara e foi caminhando até ela.
- Eu não gosto de ver minha mamãe triste - dizia numa carinha tristonha.
Clara arriscava os primeiros movimentos, indo pé ante pé para trás até sentir o pé esquerdo tocar o degrau. Alice chegou bem próximo á ela que a essa altura já estava entre o segundo e o terceiro degrau, a menina parou no primeiro e as duas se entreolharam, não podia acreditar que seria pega por uma criança.
- Agora você precisa ir embora.
A respiração de Clara acelerou, seu peito oscilava tão depressa quanto sua vida passando diante de seus olhos. Cravou a faca no peito de Clara, que levou as mãos ao ferimento tornando-se vulnerável. Num impulso Alice a empurrou, fazendo com que a jovem rolasse pelos degraus enquanto a faca terminava o trabalho. Clara caiu morta no chão, com o rosto virado para o lado, os olhos abertos e a lâmina da faca quebrada dentro de seu corpo.

Cantarolando e pulando Alice retornou ao quarto. Sentou na cama, pegou a boneca e sorrindo alegremente voltou a brincar.


15/09/2010

Gisele G. Garcia


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