A CAIXINHA DE MÚSICA


Julia era o tipo de pessoa que adorava antiguidades, desde peças pequenas até móveis e objetos de grande porte. De tanto ver o pai restaurar peças antigas pegou gosto pela coisa, ela, no entanto não trabalhava com restauração, porém quase tudo em sua casa tinha um ar secular.

Praticamente quase todo o final de semana Julia ia à uma loja próxima de sua casa, no centro de São Paulo, ver se encontrava alguma “novidade”. Entrou e olhou tudo ao seu redor, nada havia mudado a não ser por uma caixinha de música bem antiga. Cheia de curiosidade a pegou, virou ela para lá e para cá, a pequena e graciosa peça era toda em madeira com placas de acrílico pintadas com um rosa antigo perolado que revestiam a tampa e as laterais, com detalhes minuciosos de florezinhas douradas. Abriu e viu que se tratava de uma caixinha simples sem a finalidade de ser um porta-joias. Dentro havia uma bailarina pequenina e delicada, usando um tutu bandeja, ou seja, curto em tom rosa suave com detalhes dourados como no exterior da peça. Julia já resolvera, era aquela que levaria. Pela primeira vez em muito tempo tinha no olhar o brilho de uma criança, nunca vira uma caixinha tão encantadora, a peça parecia ter algo especial que a fazia reluzir em meio a tanta velharia.

Foi até o balcão pagar a pela caixinha, porém o dono da loja, um senhor da terceira idade, a surpreendeu com uma pergunta que soou bem estranha, ao menos para ela.

- Tem certeza de que quer levá-la?

- Claro. Está a venda não é mesmo?

- Sim, mas... Aviso que não aceito devoluções.

- Por que está me dizendo isso? O senhor bem sabe que nunca devolvi nada que comprei por aqui.

- Sim, mas é que todos os dias uma menininha vem aqui e fica ouvindo a caixinha tocar.

- Simples, arranje outra para ela. Caixinhas antigas não são exatamente raridades - disse sorrindo.

O dono da loja colocou a caixinha numa sacolinha plástica amarronzada e demonstrando indecisão entregou a Julia.


***


Assim que Julia chegou em casa tratou logo de achar um lugar para seu mais novo bibelô. Olhou em volta e achou o lugar perfeito, colocou-a sobre a cômoda, rodeando-a de perfumes e outros pequenos bibelôs. Deixou-a lá e saiu para se encontrar com uma amiga.


***


A noite estava tão quente que se tornava quase um suplício dormir, Julia já tinha se virado na cama mais que bife em frigideira. Levantou-se e foi até a cozinha para tomar um copo d’água.

Desceu as escadas devagar e ao chegar ao último degrau ouviu uma música doce e harmoniosa começar a tocar. Olhou para o alto da escada e achou que estava ouvindo coisas.

- Nossa, o calor está demais mesmo – disse abanando-se com a mão.

Não deu importância à música que ainda tocava e foi até a cozinha. Abriu a geladeira, pegou a jarra e encheu o copo. Ah... Como aquela água era refrescante diante daquele calor insuportável. No entanto seu alívio durou pouco tempo, vindo do andar de cima ouviu coisas quebrando, como se objetos de vidro fossem atirados violentamente contra o assoalho. O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi de que algum ladrão invadira a casa. Depositou o copo sob a pia e com cuidado e a passos suaves foi até o quintal e apanhou um pedaço de pau grosso e comprido jogado a um canto.

De maneira cautelosa foi subindo as escadas degrau por degrau. Pela porta entreaberta de seu quarto viu um vulto próximo à sua cama, entrou com tudo no quarto, gritando e avançando sobre o vulto. Entretanto a única coisa que conseguiu atingir foi a cama. Confusa, olhou pelo quarto e viu uma menina de mais ou menos onze anos de idade, parada ao lado da cômoda olhando a bailarina dançar em movimentos leves e circulares sobre um círculo vermelho em acrílico alocado no mecanismo da caixinha que o fazia girar lentamente.

- Como... Como entrou aqui?

A menina não respondeu.

Era baixa, trazia os cabelos presos numa trança com algumas mechas jogadas sobre o rosto. Tinha o olhar triste e perdido e um sorriso inocente nos lábios, enquanto ouvia aquela doce melodia.

- Você a roubou de mim – disse sem desviar os olhos da caixinha.

- Escuta aqui ô garota, você invade minha casa, quebra minhas coisas e ainda me chama de ladra - disse virando-se para o lado olhando para os bibelôs estilhaçados no chão.

Ao virar-se novamente em direção a menina, ela não estava mais lá. Procurou-a pelo quarto, mas ela havia sumido. Olhou pelo corredor do hall e não havia ninguém. Ao entrar novamente no quarto, a menina estava lá no mesmo lugar. Julia levou um susto tremendo, seu coração começou a bater descompassado, numa taquicardia.

- Como... Quem é você?

A menina foi se aproximando de Julia, à medida que ela se achegava Julia percebia que a garotinha flutuava e que seu corpo era translúcido. Julia parecia estática, não conseguia se mexer ou pronunciar uma única palavra. Até que conseguiu desviar e correr para fora do quarto.

Trancou-se no banheiro e apoiada na porta tentava entender o que estava acontecendo. Virou-se e deu de encontro com a menina atrás de si, com o rosto pálido e visivelmente irritado.

- Ela é minha.

A voz dela era cheia de ódio e aborrecimento.

Julia soltou um grito de horror e em pânico tentava destrancar a porta do banheiro. Depois de quase arrancar o trinco livrou-se daquela prisão e desceu as escadas correndo, mas aos pés dela a garotinha a esperava. Agora sim Julia entrou em desespero total, aos berros tentou abrir a porta da sala e correr para fora, mas estava trancada por mais que tentasse não conseguia abrir. Na tentativa de passar para a cozinha e alcançar a saída para o quintal, percebeu que seu corpo estava imobilizado. O mais perturbador era aquela música que não parava de tocar.

- Quero a caixinha de volta.

- Tudo bem, pode levar.

- É você quem vai devolver.

- Pelo amor de Deus me deixa em paz – gritava em meio ao choro e aos soluços.

- A caixinha é minha.

A menina foi sumindo e o corpo de Julia voltando ao normal. Ela queria acreditar que aquilo fora só um pesadelo, mas era real demais para tentar disfarçar. Julia passou a noite acordada, tentando assimilar o que aconteceu enquanto olhava para a caixinha de música que havia parado de tocar no momento em que sua verdadeira dona desapareceu. Sentada aos pés da cama lembrou-se do que o dono da loja havia dito e prometeu em voz alta que assim que o dia amanhecesse ela levaria aquilo de volta.


***


A loja acabara de abrir quando Julia entrou segurando a sacolinha. Colocou em cima do balcão e o dono a repreendeu.

- Já disse que não aceitamos devoluções.

- De quem era isso?

Ele não respondeu, ficou olhando para ela. Julia tornou a perguntar, ele então respondeu.

- Era da minha neta.

- Pois sua neta foi ontem lá em casa exigir que eu a devolvesse.

- Minha neta morreu há dez anos.

- Não me diga. É mesmo? – falou em tom irônico. – Se sabia o quanto sua neta era apegada a essa maldita caixinha, porque a colocou à venda?

- Para não ter que sentir a dor da perda todos os dias.

Julia engoliu a seco. Aquelas palavras em tom de desabafo pareceram ferir seu coração, mas permaneceu firme.

- Enfiasse ela em algum lugar que não pudesse ser vista.

- Eu juro que tentei, mas não consegui. Ela ia até meu quarto e pedia para colocar a caixinha no lugar.

- Quer um conselho? Ateie fogo nela. Nunca ouviu dizer que o fogo purifica?

Julia deixou a sacola sobre o balcão e ainda nervosa saiu de lá. Queria muito compreender o sentimento de perda, mas simplesmente não conseguia.


***


À noite o dono da loja resolveu seguir o conselho de Julia. Colocou a caixinha num tacho de alumínio, jogou um pouco de querosene sobre ela e, com o coração apertado, ateou fogo. A menina ganhara aquela caixinha dele mesmo e dizia que era a coisa que ela mais gostava em todo mundo. Todas as noites o avô colocava a caixinha para tocar e a menina via a bailarina dançar ao som da doce melodia até que fechava os olhos e dormia.

Um dia ela saiu para brincar com uma amiguinha e nunca mais voltou. Ao atravessar a rua um carro a atingiu sem dar a chance de ela ouvir a doce melodia pela última vez.

Quando a caixinha começou a pegar fogo ele viu a neta ao seu lado. Ela lhe sorriu e desapareceu. Foi a última vez que ele viu aquele sorriso. A doce melodia recomeçou a tocar e ao longe pôde ouvir a voz da neta que alegremente cantarolava sua música favorita.


Gisele G. Garcia


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