A CAIXINHA DE MÚSICA


Julia era o tipo de pessoa que adorava antiguidades, desde peças pequenas até móveis e objetos de grande porte. De tanto ver o pai restaurar peças antigas pegou gosto pela coisa, ela, no entanto não trabalhava com restauração, porém quase tudo em sua casa tinha um ar secular.

Praticamente quase todo o final de semana Julia ia à uma loja próxima de sua casa, no centro de São Paulo, ver se encontrava alguma “novidade”. Entrou e olhou tudo ao seu redor, nada havia mudado a não ser por uma caixinha de música bem antiga. Cheia de curiosidade a pegou, virou ela para lá e para cá, a pequena e graciosa peça era toda em madeira com placas de acrílico pintadas com um rosa antigo perolado que revestiam a tampa e as laterais, com detalhes minuciosos de florezinhas douradas. Abriu e viu que se tratava de uma caixinha simples sem a finalidade de ser um porta-joias. Dentro havia uma bailarina pequenina e delicada, usando um tutu bandeja, ou seja, curto em tom rosa suave com detalhes dourados como no exterior da peça. Julia já resolvera, era aquela que levaria. Pela primeira vez em muito tempo tinha no olhar o brilho de uma criança, nunca vira uma caixinha tão encantadora, a peça parecia ter algo especial que a fazia reluzir em meio a tanta velharia.

Foi até o balcão pagar a pela caixinha, porém o dono da loja, um senhor da terceira idade, a surpreendeu com uma pergunta que soou bem estranha, ao menos para ela.

- Tem certeza de que quer levá-la?

- Claro. Está a venda não é mesmo?

- Sim, mas... Aviso que não aceito devoluções.

- Por que está me dizendo isso? O senhor bem sabe que nunca devolvi nada que comprei por aqui.

- Sim, mas é que todos os dias uma menininha vem aqui e fica ouvindo a caixinha tocar.

- Simples, arranje outra para ela. Caixinhas antigas não são exatamente raridades - disse sorrindo.

O dono da loja colocou a caixinha numa sacolinha plástica amarronzada e demonstrando indecisão entregou a Julia.


***


Assim que Julia chegou em casa tratou logo de achar um lugar para seu mais novo bibelô. Olhou em volta e achou o lugar perfeito, colocou-a sobre a cômoda, rodeando-a de perfumes e outros pequenos bibelôs. Deixou-a lá e saiu para se encontrar com uma amiga.


***


A noite estava tão quente que se tornava quase um suplício dormir, Julia já tinha se virado na cama mais que bife em frigideira. Levantou-se e foi até a cozinha para tomar um copo d’água.

Desceu as escadas devagar e ao chegar ao último degrau ouviu uma música doce e harmoniosa começar a tocar. Olhou para o alto da escada e achou que estava ouvindo coisas.

- Nossa, o calor está demais mesmo – disse abanando-se com a mão.

Não deu importância à música que ainda tocava e foi até a cozinha. Abriu a geladeira, pegou a jarra e encheu o copo. Ah... Como aquela água era refrescante diante daquele calor insuportável. No entanto seu alívio durou pouco tempo, vindo do andar de cima ouviu coisas quebrando, como se objetos de vidro fossem atirados violentamente contra o assoalho. O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi de que algum ladrão invadira a casa. Depositou o copo sob a pia e com cuidado e a passos suaves foi até o quintal e apanhou um pedaço de pau grosso e comprido jogado a um canto.

De maneira cautelosa foi subindo as escadas degrau por degrau. Pela porta entreaberta de seu quarto viu um vulto próximo à sua cama, entrou com tudo no quarto, gritando e avançando sobre o vulto. Entretanto a única coisa que conseguiu atingir foi a cama. Confusa, olhou pelo quarto e viu uma menina de mais ou menos onze anos de idade, parada ao lado da cômoda olhando a bailarina dançar em movimentos leves e circulares sobre um círculo vermelho em acrílico alocado no mecanismo da caixinha que o fazia girar lentamente.

- Como... Como entrou aqui?

A menina não respondeu.

Era baixa, trazia os cabelos presos numa trança com algumas mechas jogadas sobre o rosto. Tinha o olhar triste e perdido e um sorriso inocente nos lábios, enquanto ouvia aquela doce melodia.

- Você a roubou de mim – disse sem desviar os olhos da caixinha.

- Escuta aqui ô garota, você invade minha casa, quebra minhas coisas e ainda me chama de ladra - disse virando-se para o lado olhando para os bibelôs estilhaçados no chão.

Ao virar-se novamente em direção a menina, ela não estava mais lá. Procurou-a pelo quarto, mas ela havia sumido. Olhou pelo corredor do hall e não havia ninguém. Ao entrar novamente no quarto, a menina estava lá no mesmo lugar. Julia levou um susto tremendo, seu coração começou a bater descompassado, numa taquicardia.

- Como... Quem é você?

A menina foi se aproximando de Julia, à medida que ela se achegava Julia percebia que a garotinha flutuava e que seu corpo era translúcido. Julia parecia estática, não conseguia se mexer ou pronunciar uma única palavra. Até que conseguiu desviar e correr para fora do quarto.

Trancou-se no banheiro e apoiada na porta tentava entender o que estava acontecendo. Virou-se e deu de encontro com a menina atrás de si, com o rosto pálido e visivelmente irritado.

- Ela é minha.

A voz dela era cheia de ódio e aborrecimento.

Julia soltou um grito de horror e em pânico tentava destrancar a porta do banheiro. Depois de quase arrancar o trinco livrou-se daquela prisão e desceu as escadas correndo, mas aos pés dela a garotinha a esperava. Agora sim Julia entrou em desespero total, aos berros tentou abrir a porta da sala e correr para fora, mas estava trancada por mais que tentasse não conseguia abrir. Na tentativa de passar para a cozinha e alcançar a saída para o quintal, percebeu que seu corpo estava imobilizado. O mais perturbador era aquela música que não parava de tocar.

- Quero a caixinha de volta.

- Tudo bem, pode levar.

- É você quem vai devolver.

- Pelo amor de Deus me deixa em paz – gritava em meio ao choro e aos soluços.

- A caixinha é minha.

A menina foi sumindo e o corpo de Julia voltando ao normal. Ela queria acreditar que aquilo fora só um pesadelo, mas era real demais para tentar disfarçar. Julia passou a noite acordada, tentando assimilar o que aconteceu enquanto olhava para a caixinha de música que havia parado de tocar no momento em que sua verdadeira dona desapareceu. Sentada aos pés da cama lembrou-se do que o dono da loja havia dito e prometeu em voz alta que assim que o dia amanhecesse ela levaria aquilo de volta.


***


A loja acabara de abrir quando Julia entrou segurando a sacolinha. Colocou em cima do balcão e o dono a repreendeu.

- Já disse que não aceitamos devoluções.

- De quem era isso?

Ele não respondeu, ficou olhando para ela. Julia tornou a perguntar, ele então respondeu.

- Era da minha neta.

- Pois sua neta foi ontem lá em casa exigir que eu a devolvesse.

- Minha neta morreu há dez anos.

- Não me diga. É mesmo? – falou em tom irônico. – Se sabia o quanto sua neta era apegada a essa maldita caixinha, porque a colocou à venda?

- Para não ter que sentir a dor da perda todos os dias.

Julia engoliu a seco. Aquelas palavras em tom de desabafo pareceram ferir seu coração, mas permaneceu firme.

- Enfiasse ela em algum lugar que não pudesse ser vista.

- Eu juro que tentei, mas não consegui. Ela ia até meu quarto e pedia para colocar a caixinha no lugar.

- Quer um conselho? Ateie fogo nela. Nunca ouviu dizer que o fogo purifica?

Julia deixou a sacola sobre o balcão e ainda nervosa saiu de lá. Queria muito compreender o sentimento de perda, mas simplesmente não conseguia.


***


À noite o dono da loja resolveu seguir o conselho de Julia. Colocou a caixinha num tacho de alumínio, jogou um pouco de querosene sobre ela e, com o coração apertado, ateou fogo. A menina ganhara aquela caixinha dele mesmo e dizia que era a coisa que ela mais gostava em todo mundo. Todas as noites o avô colocava a caixinha para tocar e a menina via a bailarina dançar ao som da doce melodia até que fechava os olhos e dormia.

Um dia ela saiu para brincar com uma amiguinha e nunca mais voltou. Ao atravessar a rua um carro a atingiu sem dar a chance de ela ouvir a doce melodia pela última vez.

Quando a caixinha começou a pegar fogo ele viu a neta ao seu lado. Ela lhe sorriu e desapareceu. Foi a última vez que ele viu aquele sorriso. A doce melodia recomeçou a tocar e ao longe pôde ouvir a voz da neta que alegremente cantarolava sua música favorita.


Gisele G. Garcia


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ALICE


A casa estava escura, apesar de lá fora estar um dia claro com sol forte. Um típico dia de verão.
Nenhuma porta ou janela aberta fazia a luxuosa casa de campo parecer um casebre abandonado. A temperatura quente e o tempo abafado tornavam o cheiro mais insuportável, o odor férreo de sangue misturava-se ao perfume das rosas e acentuava-se a cada leve sopro que tocava a folhagem.

Sentada à beira da cama, em seu quarto, brincava com a boneca favorita. O vestido branco rendado estava sujo e parecia não ferir a delicadeza da colcha rosada. Com um afetuoso sorriso, Alice acariciava os cabelos dourados da boneca. Tão doce e inocente quanto o sorriso era a dona dele, uma menina de longos e fartos cabelos negros, grandes olhos azuis que pregavam muitas peças em quem os olhasse. De pele alva e maçãs do rosto sutilmente rosadas, Alice assemelhava-se a uma delicada bonequinha de porcelana. Uma garotinha visivelmente frágil em seu pequenino corpo de dez anos, cuja alma carregava algo assustador que não se adequava à sua forma ingênua.

***

Ao cair da tarde um grupo com quatro pessoas, que fazia trilha, decide fazer uma pausa e recobrar o fôlego. Eva abre a mochila em busca de uma garrafa d'água e dá-se conta de que as duas que trouxera encontravam-se vazias, pede um pouco aos colegas e entre tantas garrafinhas apenas uma continha menos da metade de seu precioso conteúdo.
- Poxa... Todas vazias? - lamenta a moça.
- É que saímos cedo e já está escurecendo – justifica Pedro, dono da única garrafa d’água.
- E falta um bocado para chegarmos à pousada - diz Lúcio.
- E se pedirmos um pouco naquela casa? - pergunta Pedro, apontando para a casa escondida detrás de um soberbo portão de ferro.
- Não sei não... - fala Clara. - A casa parece fechada, e... Credo! - disse em tom repugnante, comprimindo o nariz entre os dedos - Que cheiro é esse?
- Não sei. Deve ter alguém aí tomando conta.
Pensaram por um momento e resolveram arriscar, afinal em breve anoiteceria e não podiam caminhar mais uns bons metros sem alguma água nas mochilas.
Empenhando pouquíssima força Lucio abriu um dos portões que se encontrava destrancado.
- Estranho, - comenta Eva - uma casa como essa deveria estar protegida vinte e quatro horas por dia.
- Isso não vem ao caso agora – fala Lucio - O que precisamos é de água não dicas de segurança.
Eva não gostou do comentário, mas ficou calada, não era o momento para entrar numa discussão.
Numa fila foram adentrando o pátio da casa formado por um vasto tapete verde onde estava estacionado o carro da família.
A porta de entrada também se encontrava aberta e, apesar da estranheza decidiram entrar.

***

Ela sabia que tinha gente na casa. Ajeitou o vestido azulado da boneca e acomodou-a em frente ao travesseiro de modo que permanecesse sentada.
Saltou da cama num tímido pulinho.
Próximo aos pés da cama contornou o corpo da mãe atirado ao chão de forma retorcida numa poça que passava do viscoso já beirando o seco.
- Não fique com medo, eu já volto - disse, olhando para baixo em direção ao corpo.
Abriu a porta e saiu.

***

Lucio tateou a parede junto à porta de entrada, encontrou o interruptor e impulsionou-o para cima fazendo com que as luzes do hall de entrada e da sala acendessem. O grupo ficou deslumbrado com a beleza da casa e estranhou o fato de não haver ninguém tomando conta.
O terrível odor tornou-se mais intenso, tapar as narinas diante daquilo foi inevitável.
- Por Deus, o que é isso? - pergunta Clara.
- Parece carniça – retruca Pedro, enojado.
Pedro não conteve a repulsa e levando uma mão à boca e outra ao estômago, correu para fora e despejou todo seu nojo sobre a grama. O líquido amarelado e ralo saiu como um jato de sua boca e pareceu aliviar sua náusea. Limpou a boca, cobriu o nariz com um lenço e voltou para dentro da casa.
Em meio à um mal-estar generalizado, passos lentos e leves são ouvidos caminhando pelo assoalho do andar superior. Todos imaginam que seja o dono da casa. Lucio grita um “Olá!” e, em tom bastante elevado diz que veio com um grupo, pois precisam abastecer-se com água.
Nenhuma resposta é ouvida.
Repete mais uma vez e nada acontece.
- Vai ver ele não ouviu. Vou até lá – diz Eva.
- Vou com você – fala o rapaz que gritou.
Com cuidado eles sobem as escadas, não sabem qual será a reação do dono da casa ao verem-nos por lá. Os outros dois ficam lá embaixo apenas observando e tentando não passar mal.

Ao final do corredor havia uma porta semi-aberta, o odor pútrido parecia aumentar à medida que se tornavam mais próximos. Ao chegar à porta, com calma o rapaz repete o mesmo discurso que há pouco.
- Tô começando a ficar com medo - diz Eva, apoiando-se no braço do amigo.
Ele abre a porta e depara-se com um breu assustador, acha o interruptor e o lustre é aceso deixando à mostra uma cena pavorosa. O grito da jovem corta de maneira brusca o silêncio mortal que imperava em toda aquela escuridão.
A porta fecha-se atrás deles, o barulho faz os dois voltarem-se abruptamente, junto à parede ela surgiu como um anjo em meio a um cenário de destruição iluminando a tudo se mostrava quieta, séria.
Olharam-na assustados, era estranha sua calma diante de tal cena. Aturdida Eva vê sangue no vestido da menina.
- Garotinha... – diz a moça, com voz trêmula. – Sabe... Sabe dizer o que aconteceu?
Os olhos de Eva, apesar de observarem uma figura tão suave, pareciam não se acostumar àquela obscuridade que ia muito além das luzes apagadas.
Alice afastou-se da parede e foi até ela, fez sinal com a mão para que abaixasse. Eva olhou para o amigo que fez um sinal com a cabeça para ela obedecer, a jovem então apoiou as mãos nos joelhos e tombou o tronco para frente. Alice aproximou-se do ouvido dela e sussurrou algo estarrecedor.
- Eu o matei.
Eva afastou o rosto e olhou abismada para a garotinha que agora possuía um sorriso resplandecente como se houvesse acabado de ganhar a boneca que tanto desejara. Trouxe a mão à frente e a lâmina da faca fez-se fúlgida e num único golpe, sem dar chance dela reagir rasgou-lhe o pescoço atingindo sem piedade a jugular. O sangue jorrava profuso, imaculando ainda mais o branco rendado de seu vestidinho.
Enquanto Eva agonizava em gritos roucos e abafados jogada ao chão meio a uma piscina de sangue, Lucio estava estático, como se uma força invisível o segurasse impedindo-o de movimentar um único músculo. Alice pôs-se a rir do pânico estampado no rosto dele, era uma risada gostosa como a de um bebê, e alegre demais para uma situação tão bestial. Ainda rindo aproximou-se dele e sem nenhum esforço cravou-lhe a faca na barriga rasgando seu ventre de baixo para cima numa linha reta e profunda. O corpo caiu pesadamente para frente, Alice afastou-se rápido para não ser atingida. A voz saía baixa e ele não conseguiu respirar por mais do que míseros e aflitivos segundos que passaram acelerados já que a dor o impediu de sentir o tempo.
- Shhh... Papai está dormindo – murmurava olhando de um para outro, com o dedinho em riste próximo à boca.
Cantarolando baixinho saiu do quarto.

Parou frente à porta e viu um casal junto à escada. Sem esboçar nenhum sentimento aparente Clara viu o sangue que banhava o vestido, o sapatinho branco lustroso e os braços da menina. Ao ver a faca dependurada naquela delicada mãozinha não pôde deixar de pensar que aquela garotinha havia emergido de um matadouro onde Clara presumiu quem era a caça e quem era o caçador. A essa altura Pedro se aproximava de Alice, imaginando que aquele inócuo anjinho era vítima de algum maldito louco, Clara então gritou para ele parar. Virou-se para ela e abriu a boca para defender a doce criaturinha acuada no fim do corredor, no entanto de seus lábios nenhum som foi emitido. A mochila caiu de sua mão e seus olhos pareciam querer saltar das órbitas, sua última visão foi a de Clara com as mãos na boca e os olhos arregalados pelo pavor. Ele desabou sob o tapete cinza que revestia o assoalho de carvalho bem lustrado do único corredor do primeiro andar.
Do ponto onde Alice estava, mirou como um atirador a ponta da faca em direção às costas de Pedro e atirou com a agilidade e a precisão de um assassino profissional.
Clara não sabia se corria, se gritava, se chorava ou se ia ao auxílio do amigo, simplesmente ficou ali imóvel sem reação, sentindo somente a agonia e o arrependimento por ter aceitado a infeliz ideia de "invadir" a casa de campo.
- Sabe... - dizia caminhando até o corpo de Pedro - Mamãe é muito ciumenta.
Agachou ficando de cócoras, esticou o braço e bem devagar puxou a faca. Sentiu o calor do corpo dele e uma sensação de rara felicidade ao ver o brilho ainda vivo no sangue que cobria a lâmina impedindo-a de ver o reflexo azul de seus olhos.
- Logo ela vai acordar e ficará triste se te ver por aqui - dizia lambuzando o dedo no sangue da lâmina.
Com delicadeza limpou a faca numa das pernas da calça de Pedro, em seguida a analisou para se certificar de que ficara realmente limpa, ainda não conseguia ver seu reflexo, mas estava bom. Pôs-se de pé, virou-se para Clara e foi caminhando até ela.
- Eu não gosto de ver minha mamãe triste - dizia numa carinha tristonha.
Clara arriscava os primeiros movimentos, indo pé ante pé para trás até sentir o pé esquerdo tocar o degrau. Alice chegou bem próximo á ela que a essa altura já estava entre o segundo e o terceiro degrau, a menina parou no primeiro e as duas se entreolharam, não podia acreditar que seria pega por uma criança.
- Agora você precisa ir embora.
A respiração de Clara acelerou, seu peito oscilava tão depressa quanto sua vida passando diante de seus olhos. Cravou a faca no peito de Clara, que levou as mãos ao ferimento tornando-se vulnerável. Num impulso Alice a empurrou, fazendo com que a jovem rolasse pelos degraus enquanto a faca terminava o trabalho. Clara caiu morta no chão, com o rosto virado para o lado, os olhos abertos e a lâmina da faca quebrada dentro de seu corpo.

Cantarolando e pulando Alice retornou ao quarto. Sentou na cama, pegou a boneca e sorrindo alegremente voltou a brincar.


15/09/2010

Gisele G. Garcia


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Destino


Adelaide terminava de arrumar-se para seu casamento. Com a cabeça cheia de dúvidas e incertezas contemplava seu reflexo no espelho.

O noivo a aguardava com a felicidade estampada no rosto.

O padre fez a tão aguardada pergunta, se ela aceitava Daniel como seu legítimo esposo, Adelaide ficou calada e o padre repetiu. Olhou para Daniel e com o olhar de culpa pelo que iria fazer, saiu do altar indo até um dos convidados sentado no último banco, ela agarrou-o pela mão e saíram em disparada. Daniel tentou alcançá-los, mas foi em vão, entraram num carro que já os aguardava. Correu atrás do carro clamando por Adelaide, caiu de joelhos aos prantos.

Em casa Daniel sentou-se na cama colocando o rosto entre as mãos, chorando, amaldiçoou a noiva e o melhor amigo por ter fugido com a mulher de sua vida. Segurando uma navalha de cabo dourado e lâmina afiada num único golpe a enterrou em sua têmpora. Sentiu uma dor terrível invadir-lhe o corpo, deixando-se entregar aos braços da morte.

***

Muitos anos se passaram desde então, e a família Araújo acabava de se mudar da capital paulista para o interior. A família era composta por Adelaide; o melhor amigo de Daniel, Ângelo; e pela única filha Melissa, uma garota quieta e esquisita aos olhos dos outros. Melissa tinha o dom de ver e ouvir o invisível.

A cidade era pequena e foi ali que Adelaide e Ângelo nasceram. Melissa sentiu algo estranho; veio em Adelaide a terrível sensação de dezoito anos atrás.

_ Aqui estamos. Nossa nova casa. Nessa cidade sua mãe e eu nascemos. É muito bom voltar às raízes _ disse, abraçando a esposa que retribuiu com um sorriso.

_ Mora alguém aí? _ pergunta Melissa avistando um vulto numa das janelas.

_ Não, por quê?

_ Por nada.

Ângelo pegou a chave no bolso e abriu a larga porta de entrada.

Por fora a casa era grande, via-se que outrora pertencera a pessoas ricas. O tempo e a falta de cuidados haviam consumido suas paredes, por dentro algumas se encontravam com rachaduras e umidade, havia um forte cheiro de bolor impregnando os móveis cobertos por panos, o carpete e o piso empoeirado. Assim que puseram os pés dentro da casa taparam o nariz para não inalarem o forte odor causado pelo mofo e bolor.

No andar superior um longo corredor iluminado apenas pela claridade natural, era marcado por inúmeras portas que davam acesso e quartos e uma pequena biblioteca, Melissa escolheu uma porta qualquer e entrou. Sentiu que era observada, mas não deu importância. Daniel olhava da janela do quarto quando a família chegou. Alto e pele clara, vestia roupas e sapatos escuros. Olhar caído, semblante pesado, um corte profundo marcava-lhe a têmpora. Carregava consigo muita raiva da pessoa que pusera aquela marca em sua cabeça.

_ Ela será a pessoa perfeita é vulnerável, negativa _ disse olhando Melissa.

À noite Melissa sonhava com pessoas que não conhecia. Estava numa igreja.

“_ Aceita Daniel Bitencourt como seu legítimo esposo?

Sem responder ao padre e ao futuro marido, a jovem saiu da igreja acompanhada por outro homem.

Aos outros, Melissa era invisível. Da igreja foi transportada para um quarto. O noivo abandonado estava com uma navalha nas mãos e com um único golpe enfiou a navalha afiada na cabeça. A garota assistiu tudo sem demonstrar espanto, sentiu raiva ao ver a tristeza do rapaz, o locar foi escurecendo até o corpo de Daniel desaparecer por completo.

Em questão de segundos, Melissa estava num cemitério assistindo a um enterro regido por uma forte chuva e um vento congelante, um caixão branco descia por uma cova profunda enquanto pessoas de luto rezavam e choravam, porém Melissa não conseguia ver os rostos apenas via gotas de sangue manchando o caixão branco.”

Acordou sobressaltada. Abriu os olhos, mas não se moveu, via sombras correrem de um lado a outro do quarto, um frio tomou conta de si. Sentiu o peso de um corpo sentando-se aos pés da cama, levantou a cabeça e viu um homem sentado de costas para ela. A cena do suicídio veio-lhe à mente.

_ Quem é você? _ perguntou temerosa. Não houve resposta. _ Achei que não havia ninguém morando aqui.

_ O quarto e a casa são meus.

_ Saia imediatamente ou eu grito.

_ Ninguém irá ouvi-la.

Melissa gritou várias vezes, mas sua voz saía sufocada.

_ O que quer? Porque não se vira para eu ver o seu rosto?

Daniel virou, assustando a garota.

_ Você é um maldito louco.

Rindo, Daniel levantou-se e foi em direção a porta sumindo antes de chegar a ela. A menina gritou e esfregou os olhos achando que tudo não passara de um pesadelo.

No dia seguinte Melissa foi até a casa de uma prima. Conversa vai, conversa vem, decidiram fazer o jogo do copo, Melissa queria saber quem era o homem que invadira seu quarto no meio da noite. As duas rezaram e começaram Ajeitaram o copo virgem sobre uma cartolina branca com letras e números escritos sobre ela. Colocaram os dedos indicadores sobre o copo e a prima de Melissa fez a primeira pergunta.

_ Tem alguém presente neste momento?

O copo desloca-se até a palavra SIM.

_ Qual é o seu nome?

O copo voa e choca-se contra o espelho. O semblante de Melissa muda repentinamente, sua voz engrossa tornando-se voz de homem.

_ Meu nome não interessa.

_ O que quer com Melissa? _ indaga, com o coração aos pulos.

_ Vingança.

_ E por quê?

Daniel riu.

_ Ela sabe o porquê. Vou destruir o seu bem mais precioso.

Após dizer isso Melissa desmaiou, a prima foi acudi-la.

Após cheirar um chumaço de algodão embebido em álcool a jovem em fim despertou.

_ O que houve? _ pergunta ainda zonza.

_ Ele esteve aqui. Usou você para se comunicar. Perguntei o que queria e respondeu que você sabe.

***

As coisas mudaram para pior depois daquilo, Daniel estava mais forte perante Melissa. Na maioria das vezes quando discutia com a mãe falava coisas sem sentido, porém com tanta firmeza que parecia estar cem por cento certa do que dizia.

Na semana seguinte àquilo, Melissa ia tomar banho quando os pais entraram no quarto decididos a ter uma conversa séria e decisiva com a filha.

_ Queremos conversar com você, sobre sua má conduta com seu pai e eu.

_ Não to a fim de conversar.

_ Mas vai. Volte já aqui e sente-se _ disse Ângelo, nervoso.

Melissa voltou de cara amarrada e jogou-se na cama.

_ Tem que aprender a nos respeitar, a deixar de ser tão agressiva _ disse Ângelo.

_ Não sei do que estão falando.

_ Ah! Não! A senhorita é grosseira e mal-educada. Não a criamos assim. Gastamos muito dinheiro com a sua educação, te matriculamos nos melhores colégios e não foi para transformá-la numa marginal.

_ Já acabou? _ remedou com desdém.

_ Seu pai e eu sofremos muito com o seu jeito de ser.

As feições de Melissa mudaram novamente, começou então a rir do que Adelaide falara.

_ Posso saber do que está rindo?

_ Vocês não sabem o que é sofrer. Não sabem o que é viver com a raiva e a amargura corroendo a alma _ falou olhando-a firme nos olhos.

Desviou o olhar de repente, e colocando uma das mãos sobre a cabeça soltou um breve gemido de dor.

_ É melhor mesmo ir tomar banho, de preferência frio para limpar a mente dessas besteiras.

Melissa não conseguia explicar o que aconteceu.

Naquela mesma noite acordou e foi até o quarto dos pais. Abriu a porta devagar e parou em frente à cama do casal, com as mãos postas para trás.

_ Boa noite! _ disse.

Os dois acordaram e surpreenderam-se ao ver a filha ali parada.

_ Melissa? O que faz aqui? _ pergunta Adelaide, olhando para o relógio.

_ Vim mostrar-lhes o futuro, baseado no passado _ desse começando a engrossar a voz.

_ Do que está falando? _ pergunta Ângelo, sonolento.

Melissa transformou sua voz na de Daniel, exatamente igual, despertando em Adelaide um sentimento já extinguido pelo próprio tempo.

_ De um amor traído. Você me abandonou naquele altar e tirou de mim a minha única alegria, e hoje tiro de vocês a sua única alegria.

_ Daniel... _ sussurrou Adelaide.

_ Eu mesmo. Agora diga adeus à sua filha, pois temos que partir.

_ Não!

_ Adeus... Mamãe _ dizia rindo.

Impulsionada por Daniel, Melissa tirou de trás de si uma navalha de cabo dourado e lâmina afiada e enterrou-a na têmpora. O corpo de Melissa caiu sobre o assoalho de madeira, fazendo um estrondo terrível.

Seus pais não puderam deixar de conter um grito de dor e horror.

***

O corpo de Melissa foi enterrado num caixão branco embaixo de uma tarde tempestuosa e fria. Melissa assistia ao pr óprio enterro ao lado de Daniel.


02/09/1010

Gisele G. Garcia


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